Cultura

Entrevista: B. Fachada – “um gajo do contra” 

Sofia Ramos

Entre atuações no Festival APURA, artista explora repúblicas, criatividade e o seu ‘one man show’. Cantautor reflete sobre discurso poético como arma para destruição de convenções sociais. “Acho mais importante produzir uma cultura que resulta do que produzir uma cultura que me encha de vaidade”, expressa. Por Raquel Lucas e Sofia Ramos

Qual é a tua ligação com Coimbra?

Isso é uma conversa muito grande. Não frequentei Coimbra como estudante nem em idade de estudante, comecei a frequentar ao vir tocar. Vinha quase sempre ao Salão Brazil, vim uma ou duas vezes ao Teatro Académico de Gil Vicente, toquei uma vez na Queima das Fitas com Diabo na Cruz… mas nunca tinha entrado em nenhuma república, apenas uma vez nos Inkas. Ontem fui à Bota e aos Fantasmas e hoje vou à Rápo-Táxo, mas não tenho nenhuma relação direta com as repúblicas. É um assunto no qual eu já pensei, de uma maneira mais teórica, mais genérica. Coimbra tem, como dizia o meu professor de literatura brasileira, um papel muito importante na literatura, porque todos os escritores se divertiram a dizer mal de Coimbra. Há uma grande tradição na literatura portuguesa de cascar a cidade, isso é interessante. Há até quem diga que D. João mandou os professores para Coimbra para os castigar, fundou a Universidade de Coimbra para isso. De resto, nada, não tenho assim nenhuma relação pessoal com a cidade.

Como surgiu a ideia de vires atuar às repúblicas de Coimbra? 

A ideia surge de eu achar que as repúblicas em Coimbra são um bocado a inveja das outras cidades universitárias do país. Em Lisboa chama-se “república” a uma casa não oficial onde viveram duas ou três gerações de estudantes de Artes ou Antropologia, é o suficiente para a casa ter uma organização interna. Aqui as repúblicas têm privilégios, cultura, história, tradição e uma função cultural. Acabam por ser uma espécie de remédio para todas as doenças: para a questão habitacional, para a falta de cultura livre, independente e à margem. São uma solução para a ideia de que, em Coimbra, pode e deve existir interseção de pessoas diferentes que estudam assuntos diferentes mas que se juntam no mesmo sítio com objetivos comuns. Eu sempre tive esta ideia de que tinha que fazer uma ‘tour’ pelas repúblicas. 

Qual é a importância que atribuis a este género de iniciativas? 

A iniciativa é importante para chamar a atenção, lançar conversa e se pensar sobre isso. Para se ver a cultura a funcionar e de que maneira é que isso confere mais poder às repúblicas, tentar fazer com que ganhem uma relevância cultural e social na cidade. Para que deixe de fazer sentido falar em dificuldades das repúblicas, nas casas que estão em risco de fechar, isso nem sequer devia ser um assunto, devia ser uma coisa evidente. O turismo faz-se naquela casa ou na casa ao lado, não faz diferença, enquanto que uma república, onde existe, já existe e já está a funcionar. Imagina-se todas as repúblicas a funcionar com muita pujança e sincronizadas, o que faria com que esse assunto dos problemas fosse impossível de lançar por quem tem interesse em lançá-lo. Nunca foi tão interessante despejar repúblicas, nem nunca vai ser menos, vai ser sempre mais interessante e vai dar sempre mais jeito a mais gente. É uma coisa que tem de se contrariar com a única arma que as pessoas têm por si: a cultura e o serviço social independente, livre, marginal e alternativo. 

Qual o balanço que fazes das atuações na República do Bota Abaixo e na República dos Fantasmas?

Foi fixe. Foi muito diferente porque, à tarde, foi dentro de uma sala e o pessoal estava com mais atenção, à noite foi numa hora em que a malta já estava com expectativa de festa. Isso é uma coisa normal, que acontece em qualquer sítio mais informal: quando uma pessoa começa a tocar, as pessoas começam a conversar, porque está a dar música. Eu estava a tocar só acústico e comecei a ficar assoberbado pela atividade das pessoas, muito irrequietas. Não consegui esticar o concerto mas toquei quatro ou cinco músicas, que era o meu papel. Se os Fantasmas nos tivessem convidado a fazer aquilo dentro de casa, teria sido diferente, tinha-se ouvido melhor o concerto. Talvez não toda a gente, mas as pessoas que tinham entrado, com mais fome de ouvir. Foi como foi. 

Em relação às particularidades destas atuações, de curta duração e em acústico, encontras algum tipo de limitação em palco?

À indústria da música convém sempre que o concerto seja o maior possível, porque todas as pessoas da indústria ganham à percentagem. O autor é a única pessoa que ganha o que sobra da percentagem dos outros, por isso é que há uma pressão para os valores de produção aumentarem e os concertos serem maiores e darem emprego a mais gente. Essa é uma pergunta relacionada com o contacto que eu tenho regularmente com a indústria. Toda a gente tem interesse em que eu tenha mais gente comigo, mas eu não tenho. Eu tenho interesse em estar sozinho e em fazer o meu trabalho, em fazer evolui-lo até ao ponto em que o consiga fazer sozinho. Há um lado da música ao qual nunca se consegue chegar sozinho, não é? Mas o meu trabalho é fazer canções, eu sou músico mais por arrasto do que por profissão principal. A minha profissão principal são as canções e prefiro servi-las diretamente, sem nada a acompanhar, e resulta. Os valores de produção são sempre muito tentadores e dão muita vaidade, uma pessoa fica orgulhosa das coisas estarem com um aspeto muito profissional, mas como não foi essa a minha porta de entrada, também nunca foi uma coisa que eu perseguisse. 

“Acho mais importante produzir uma cultura que resulta do que produzir uma cultura que me encha de vaidade”

Algo transversal aos teus espetáculos é a atuação a solo. Ao ter em conta todas as camadas de instrumentalização presentes na tua música, de que forma é que esta característica pode tornar-se uma barreira em espetáculos ao vivo?

É engraçado esse assunto ser tão circular, desde que eu comecei que sempre existiu esse comentário. Há pessoas que gostam mais dos discos e não percebem por que é que os concertos são assim, e há outras que gostam mais dos concertos e não percebem por que é as músicas não estão cantadas como nos espetáculos. Depois há outras que não gostam de nada, isso é evidente. Sempre foi assim e sempre foi uma questão o facto de o concerto ser diferente do disco. São versões do trabalho muito diferentes para mim, eu não adoro tocar ao vivo como adoro gravar um disco.

Tocar ao vivo é muito mais difícil, consome-te. As pessoas chupam-te a alma e depois tens que ir para casa”

É, se calhar, o estado mais alto do esgotamento social: um concerto. Ao mesmo tempo, o espetáculo tem um lado performativo que, para mim, é mais ou menos intuitivo. Estar presente e fazer ali um truque que acaba por resultar de uma maneira especial, em vez de ser como um músico perfeitinho, que começa num sítio e desliga, toca sempre no mesmo alinhamento e só acorda no fim do concerto, que é o normal.

“Eu faço as coisas sempre ao contrário, nunca sei o que vou tocar, tenho de estar sempre muito de corpo presente”

O lado performativo tem a ver com a minha escola e com as pessoas que me ensinaram, que não são músicos, são da literatura e de outras áreas. Eu aprendi dessa maneira e isso é algo que me safa nos concertos. Por outro lado, os discos são muito experimentais, onde eu vou aplicar o que estudei de música e a música em si. Vou tocar baixo, adoro tocar baixo; vou fazer coros, adoro fazer coros… Vou fazer todas essas coisas que adoro e vou olhar para as músicas de uma maneira muito diferente, por isso é que os discos são bastante diferentes dos concertos, não têm nada a ver. 

A tua música é acompanhada por instrumentos tradicionais, como é o caso da viola braguesa. Qual é o papel deste tipo de instrumentos na tua construção musical e na tua evolução como artista? 

A especialização na técnica é, geralmente, um pouco inimiga da criatividade. Uma pessoa, à medida que se especializa numa técnica, começa a ter que ficar invisível atrás dela, um bocado por trauma da escola da música clássica, que te ensina a ser um especialista. Eu continuo a ter uma lista de instrumentos que ainda não tenho e que gostava de vir a ter e a tocar: uma harpa, um cravo… ainda tenho esses discos todos para fazer. Agora estive numa fase da precursão em que comprei o meu cajón, um xilofone… comprei uma data de instrumentos para aprender a tocar. O facto de estar sempre a mudar o som e os instrumentos, por um lado, tem essa forma de exploração criativa, lava-te um bocado a cabeça e começas a olhar para o trabalho de outras maneiras.

“Também é porque eu sou um gajo do contra”

O normal da indústria é as bandas estarem toda a vida a fazer o mesmo som, a mesma música e serem pressionadas a tal. As minhas referências não eram assim, eram músicos que faziam muitos sons diferentes, por alguma razão tu continuas a ouvir a identidade do autor através da diversidade dos estilos. Sempre foi atrás disso que eu trabalhei mas, de propósito, de um extremo ao outro: do disco com muita distorção para o disco muito seco, do disco para crianças para o disco para adultos. Sempre a tentar variar o mais possível de um para o outro e tentar, através do estranho e do inesperado, lançar o enigma, para que o trabalho seja o desfiar dessa surpresa e desse mistério.

Como é que fazes a ponte entre as sonoridades presentes na tua música e a construção da lírica?

Por norma, quando estou a compor, só estou a tocar um instrumento. Há um instrumento que tem um som que, em princípio, tem que ter uma textura forte e um lado físico do ritmo e da maneira como eu toco, para poder passar muito tempo a tocar e imaginar muitas melodias diferentes. O som vai sugerindo as palavras, à medida que já há uma ou outra, começa-se a trabalhar de uma maneira mais fria e depois tem que se ir corrigindo tudo, muito devagarinho, até as coisas estarem bem encaixadas. Eu estou a ouvir o encaixe musical e, a partir daí, é que as letras começam a aparecer: às vezes de ideias que já tinha, noutras, a ideia é nova e vai surgindo, depende das canções. Normalmente, chega sempre a um ponto em que eu não estou a conseguir acreditar que sou eu que estou a fazer aquela canção, estou sempre a pensar – “esta canção já existe, tenho a certeza. Como é que sou eu que estou a fazer uma canção que é uma conta de somar? Tenho a certeza que já alguém teve esta ideia”. É isso que eu estou a prosseguir.

Qual é o espaço que a política e as questões sociais ocupam na tua música? 

Dizia o Zeca que a música, em primeiro lugar, tem que intervir musicalmente, não politicamente. Ao mesmo tempo eu tenho os meus interesses.

“A música, a cultura e, neste caso, o discurso poético, servem para quebrar a lógica binária do mundo convencional, em que queremos o certo e o errado, o cima e o baixo”

No discurso poético, como o tijolo é a metáfora, tu consegues explorar esse movimento lateral de pensamento, aplicando-o a tudo. Consegues sempre colocar-te perante paradoxos do nosso dia-a-dia, difíceis de analisar de uma maneira filosófica e numa discussão política séria, mas que, no discurso poético, são fáceis. Para mim é muito mais fácil destruir as convenções sem as substituir por outras: quando começas a falar seriamente dos assuntos, começas a tentar destruir uma convenção e a substituí-la por outra. Aqui não é preciso, é possível fazer uma música inteira a falar do Lambe-Cus sem o substituir por nada e sem chegar a uma conclusão em absoluto de quem está mal: se é o gajo que está a julgar, se é o gajo que está a ser julgado. Ficas na dúvida porque, de facto, isso não é conclusivo, e se achas que é conclusivo, estás mal. Esse é o papel do discurso poético: nas canções existe a vantagem de este ser mais público, mais pop, chegar a mais gente e dominar o ‘timing’. Poesia escrita trabalha no tempo mas és tu, a ler, que pões o ‘timing’. Nas canções, não. Não é um poema mas é um discurso poético, no qual eu estou a dominar esse ‘timing’ e tiro o coelho da cartola quando está toda a gente a olhar para ela. Posso preparar o fim da canção no início da canção, e sei exatamente em que momento é que vou lá chegar. Como isso fica tudo preparado, dá para fazer muita coisa, não constatar o óbvio e toda a gente perceber o que estou a dizer ao mesmo tempo.

Sentes, então, que a música é uma oportunidade para abordar e explorar esses “interesses”?

É uma oportunidade para abordar assuntos complicados, não para abordar os mesmos de sempre, isso não tem graça nenhuma, até porque às vezes basta isso para fazer a magia. Basta começar uma canção, tipo a “Namorada”, que, no género, no som e no ritmo, parece que vai ser reacionária mas, depois, pões-lhe um tema cortante e ‘edgy’ e viras a convenção ao contrário. Isso acaba por ser suficiente para fazer a magia e para pôr toda a gente em sintonia com a mudança de lógica que estás a apresentar. Na “O Anti-Fado”, não é uma questão de género musical, mas é uma questão de se ir apresentando aquela alteração lógica de perspectivas diferentes, até estar toda a gente comigo e a perceber o que estou a dizer. Ter toda a gente a pensar – “pois, este gajo é mesmo do contra, como é que se consegue ser ainda mais do contra?”, e eu – “há outra maneira de ser do contra, é assim; e outra maneira de ser do contra; e outra …”. Depois, no refrão temos, ainda, a contradição do gajo do contra. Isso é uma coisa que vai acontecendo aos poucos: tu, quando dás por ti e a música está a meio, estás a entender uma lógica que, ao inicio, não era clara.

Como é que a mensagem que tentas passar através da música se enquadra na situação atual dos jovens, na sua maioria estudantes, e das repúblicas?  

Acho que se encaixa na ideia da criatividade, da transgressão, da marginalidade, de ver uma maneira de fazer as coisas que é minha. Fazer as coisas à minha maneira e tentar nunca ceder à tentação de fazer as coisas à maneira dos outros. Uma pessoa não se deixar influenciar, nisso acho que se encaixa. Depois, encaixa-se de maneiras diferentes para cada um, eu gosto de ter um público diversificado. Há pessoas que gostam mais das músicas que são para pensar, há outras que gostam mais das que são para rir, das românticas, das canções para crianças, das que são para namorar, depende. Há pessoas que se riem muito e outras que não se riem nada, há quem seja muito sensível ao lado sério e triste das canções, mesmo quando estão a ter graça. As canções, mesmo quando engraçadas, para mim são sempre muito tristes, então há pessoas que são muito sensíveis a esse lado. 

Fez agora três anos que lançaste o teu último álbum, Rapazes e Raposas, após alguns anos sem publicar música. O que é que vem a seguir? 

Tenho que fazer mais um disco, continuar a produzir, senão teria que ter outra profissão. Tenho músicas mas escrever as letras é muito difícil, demora muito tempo. Quando começa a desbloquear é mais ou menos rápido, mas nunca sei quando é que vai ser. Uma pessoa está sempre a recomeçar, faz parte. 

Fotografias por Sofia Ramos

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