Ensino Superior

Livro de conduta sexual acusa docentes do CES de abusos e assédio

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Acusações surgem num livro sobre assédio sexual disponibilizado a 31 de março. CES vai investigar denúncias contra dois investigadores. Por Matilde Dias e Carolina Silva

Três investigadoras, autoras do livro “Sexual Misconduct in Academia – Informing an Ethics of Care in the University” (Má conduta sexual na Academia – Para uma Ética de Cuidado na Universidade), acusam dois membros do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) de usarem o seu poder sobre jovens estudantes e investigadoras para “extrativismo sexual”. O artigo do livro acusa também a instituição de “silenciamento” e “cumplicidade”.

Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Myie Nadya Tom estiveram no CES como investigadoras e estudantes de doutoramento. Segundo o Diário de Notícias, o livro descreve acontecimentos ocorridos numa instituição que, apesar de não ser nomeada, a opinião pública assume como sendo o CES. Inclui ainda a descrição de dois homens, cuja identidade não é mencionada, que protagonizam condutas sexuais inadequadas. Face à descrição feita no livro, os nomes do sociólogo Boaventura Sousa Santos, diretor emérito do CES e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, e do antropólogo Bruno Sena Martins, investigador do quadro da instituição, surgiram como correspondentes. Confrontados pela comunicação social, ambos assumiram reconhecer-se como retratados sob essas denominações, mas refutam as acusações.

Num comunicado da Direção e da Presidência do Conselho Científico do CES publicado no site oficial, afirmam que o CES “não vai ficar de fora da discussão deste assunto”. Além disso, reforçam ainda que a instituição não se vai demitir da responsabilidade de promover um ambiente “mais igualitário e livre de todas as formas de assédio”.

A instituição criou, desde 2019, um conjunto de instrumentos que têm como objetivo dar respostas no âmbito do tema do assédio sexual e, por isso, aprovou-se o Código de Conduta do CES. Além disso, clarificou-se o papel da Comissão de Ética, criou-se a Provedoria do CES,  um canal de denúncias e foram aprovados um Plano para a Igualdade de Género e uma Política de Proteção à Infância. O CES declarou ainda no comunicado que “lamenta que estes mecanismos só tenham sido criados há pouco tempo”. 

Boaventura de Sousa Santos prestou declarações sobre o assunto no comunicado “Diário de uma Difamação” e afirmou que o texto que lhe faz alusão “centrou-se na sua pessoa para proceder à vingança institucional”. Acrescentou que, no que toca às acusações feitas, vai “confrontar qualquer suposta vítima com serenidade e sentido de responsabilidade” e que mantém “a consciência bem tranquila”.

Ainda assim, Boaventura de Sousa Santos manifestou a sua indignação em relação a dois aspetos: o primeiro diz respeito ao envolvimento dos seus assistentes de investigação que, segundo o professor catedrático, a autora principal declara terem sido “explorados e aproveitados indevidamente” pelo próprio. O segundo aspeto, que considera como “ofensivo” e “repugnante”, corresponde às acusações feitas sobre a prática de relações íntimas entre investigadores em convívios realizados depois das aulas num restaurante.  

Boaventura de Sousa Santos expôs que, apesar dos procedimentos internos e judiciais que o CES adotar, vai apresentar uma queixa-crime por difamação contra as autoras. Mostrou-se ainda disponível para dar todas as informações e prestar esclarecimentos que sejam pedidos.

Já Bruno Sena Martins exprimiu a sua indignação na resposta dada ao DN: “Não resta dúvida que a intenção das autoras é de me expor, sem a coragem de dizer o nome, e que eu seria a pessoa designada por ‘Apprentice’”. Sublinha ainda que em nenhum momento agrediu física ou sexualmente qualquer uma das autoras, nem foi alvo de queixa por assédio ou comportamentos inapropriados.

As três autoras do capítulo estão agora noutras instituições universitárias e recusam-se a fazer qualquer comentário. Lieselotte Viaene  é professora na Universidade Carlos III, em Madrid, Catarina Laranjeiro é investigadora no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova e Myie Nadya Tom  é professora na University of Nebraska Omaha, nos EUA.

Nesta quarta-feira saíram novas denúncias contra o diretor emérito, feitas por outra investigadora que trabalhou no CES, no seguimento do capítulo acerca dos abusos na instituição. A investigadora, cujo nome está em anonimato, revelou ao PÚBLICO situações específicas em que Boaventura a convidou a “fortalecer a relação”. A mesma assegurou que expôs a situação ao atual diretor do CES, António Sousa Ribeiro, bem como a várias professoras, porém não obteve qualquer apoio. Após alguns anos, afirma ter sido contactada por Boaventura para “pedir desculpa”, mas isso não a demoveu.

Na sexta-feira passada, esta denúncia foi atribuída à deputada estadual brasileira de Minas Gerais, Bella Gonçalves, que afirmou ter sido sexualmente assediada por Boaventura de Sousa Santos no CES. Declarou a sua tentativa de denúncia do caso, no entanto, foi-lhe apresentada a explicação de que o professor catedrático era “intocável”. 

Bella Gonçalves, que ainda não tinha sido identificada, decidiu revelar a sua identidade na quinta-feira passada, ao Público e ao Observador, numa entrevista ao portal online brasileiro Agência Pública. A deputada afirmou que qualquer denúncia poderia colocar em risco o seu doutoramento, e que, caso não o concluísse, teria de devolver o financiamento ao governo brasileiro. 

Além da primeira denúncia ao CES, Bella Gonçalves declarou ter denunciado o caso ao coordenador do curso, António Sousa Ribeiro, e, após ter sido questionada se tinha conhecimento da ocorrência de mais abusos sexuais, respondeu que “não era um caso isolado”. O atual diretor do centro de investigação afirmou apenas que, após ter sido questionado pelo DN, respondeu que “ao estar anunciada uma comissão de averiguações, prestarei todos os esclarecimentos e, se necessário, apresentarei prova documental na sede própria.”

A deputada do Partido Socialismo e Liberdade, revelou ainda que, ao agendar uma reunião de orientação de tese, Boaventura de Sousa Santos explicou que seria em casa do próprio e não no seu gabinete. Bella Gonçalves afirma que não se tratava de uma reunião de orientação mas sim uma tentativa de “aproximação” e de “aprofundar a relação”. Informou também que, para além da insistência em oferecer bebida, acabou por se sentar ao seu lado e agarrar a sua coxa. 

No dia seguinte, acabou por haver uma reunião para discutir outro trabalho, o qual Bella Gonçalves realizou com o seu companheiro, e Boaventura de Sousa Santos rematou com críticas como forma de “retaliação”, segundo a deputada, após o sucedido. “Agora tenho condições que muitas mulheres não têm para denunciar”, afirmou a cientista política aludindo ao seu cargo atual. 

A política brasileira explicou ainda que as declarações dos dois acusados foram o que a levaram a falar deste assunto ao público. Além disso, pondera apresentar uma queixa formal às autoridades. No entanto, admite que tem de avaliar toda a situação que o processo traria.  “Eu não sou uma pessoa que acredita na justiça punitiva, não o quero ver pagar por o que ele fez. Não é sobre ele, é sobre a alteração desse sistema”, completou Bella Gonçalves.

Após esta polémica, Boaventura de Sousa Santos falou pela primeira vez ao afirmar que possui documentos que comprovam a falsidade das acusações sobre assédio sexual. No entanto, Moira Millán, ativista argentina, denuncia outro episódio idêntico ocorrido em 2010, no momento da orientação da sua investigação. 

Em entrevistas ao Público e ao Observador a investigadora afirmou que foi convidada para ir “buscar uns livros emprestados” ao departamento onde o professor trabalhava, mas que quando chegou ao local, este “atirou-se para cima de mim, manuseou-me, quis beijar-me e eu empurrei-o”, revela Moira Millán. A investigadora acrescenta ainda que manteve este episódio em silêncio, uma vez que a sua condição era “frágil” na academia e que foi aconselhada por um “compatriota de Lisboa a ficar calada”. 

Boaventura de Sousa Santos, quando confrontado com esta última denúncia, afirmou que a acusação é “caluniosa” e que tem “todo o interesse” em que a comissão especial criada pelo CES averigue com imparcialidade. Além disso, no passado dia 14 de abril, o professor comunicou o seu afastamento das atividades na unidade devido às notícias vinculadas. 

A comissão independente, criada para a investigação das suspeitas na instituição, recebeu esta semana detalhes do caso das três investigadoras, que são atualmente representadas por Daniela Felix, advogada brasileira. Porém, Boaventura de Sousa Santos revela não ter conhecimento dos detalhes “concretos”, mas refere que precisa de “ter conhecimento dos factos que são imputados, para que possa defender-me das acusações injustas”. 

O centro de investigação demarca-se destas acusações feitas nos últimos dias e comunica que ​​“eventuais casos de conduta inadequada ou não ética não refletem a cultura de trabalho do CES como um todo”. A entidade sublinha ainda “o repúdio por qualquer forma de assédio ou abuso e solidariza-se com todas as vítimas de violência desta natureza”.

O Jornal A Cabra tentou contactar o CES sobre o sucedido, no entanto, recusaram-se a prestar declarações.

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