APPACDM marca diferença na integração de pessoas com deficiência intelectual na sociedade. “O meu filho pode subir umas escadas, por exemplo, mas se entrar num museu não entende nada do que lá está dentro”, relata Helena Albuquerque. Por Luísa Macedo Mendonça e Cristiana Reis
A Casa de Chá é o destino comum de Mónica e Ricardo, que todos os dias traçam o caminho para a integração, através da ajuda do projeto da Associação Portuguesa de Pais e Amigos Do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM) de Coimbra. No estabelecimento, servem às mesas no espaço que é a sua segunda casa: “entrei para aqui, é aqui que fico, daqui ninguém me tira”, garante Mónica.
“Juntar o útil ao agradável”
Mónica (com trissomia 21) tem 36 anos e entrou na Casa de Chá em setembro de 2014, onde encontrou Ricardo, de 26 anos, que já lá trabalhava, ainda que tenha entrado no mesmo ano. Entre tostas, crepes, muffins e limonadas cítricas que “criam água na boca”, dão passos na integração através do convívio com os clientes e estão incluídos nos projetos das Atividades Socialmente Úteis (ASU). Com o 6.º ano de escolaridade, Mónica esteve em vários centros de atividades, trabalhou na Casa do Bacalhau e noutros estabelecimentos como empregada de mesa.
Ricardo, diagnosticado com autismo, teve um percurso diferente: concluiu o 3.º ciclo de estudos, fez um curso de empregado de andares no centro de formação da APPACDM e estagiou na churrasqueira Briosa Grill. Os dois estão agora noivos e afirmam terem “juntado o útil ao agradável”. “Para além de garantir uma maior independência, sentem-se valorizados. Gostam deste trabalho e sentem-se bem”, declara Tânia Reis, técnica de integração da associação. “O projeto da Casa de Chá está a ser um espetáculo, gosto mesmo disto. É uma casa com tanta gente, com pessoas incríveis”, confessa Mónica.


Da velha casa do guarda do Jardim da Sereia em Coimbra surgiu a atual Casa de Chá. O projeto da APPACDM, aberto em fevereiro de 2011, foi lançado na sequência do desejo da associação criar um estabelecimento de restauração, que contribuísse para a subsistência da associação, que incluísse pessoas com deficiência no atendimento, como indica a presidente da APPACDM de Coimbra, Helena Albuquerque. O projeto passou por várias fases e começou por incluir cursos de formação profissional, o que acabou por não ser viável, dados os “horários restritos”. A equipa acabou por apostar na contratação de jovens do Centro de Atividades Ocupacionais (CAO), supervisionados e acompanhados por monitores, modelo que persiste até hoje.
Para além desta vertente de integração, a Casa de Chá é também uma maneira da associação obter lucros com o seu trabalho, a fim de diminuir a dependência face ao Estado, pois, de acordo com a presidente, “muitas vezes estas instituições vivem demasiado dos fundos estatais e, quando entrei, estávamos completamente dependentes disso”. Inês Duarte, coordenadora de comunicação da associação destacou o desejo inicial de criar um espaço “para que se pudessem colocar as competências dos utentes, sonhos e a parte profissional de integração sociolaboral num sítio, uma vez que ainda não havia muito espaço para tal”.
Pandemia com consequências “irreparáveis”
Durante a pandemia, a casa teve de fechar portas. O trabalho com os jovens na associação e as respostas de apoio à deficiência também foram condicionados, dado que tiveram que permanecer em casa dada a posição de risco face à COVID-19. Este passo atrás no desenvolvimento do projeto causou também transtorno aos utentes da associação, que demonstravam ter “saudades de lá estar”. “Enquanto a Casa de Chá esteve fechada, estavam sempre a perguntar quando abria”, confessa a técnica de integração. “Tem sido uma luta muito grande manter as capacidades, porque são jovens que, quando ficam sem estímulo, não se conseguem estimular a eles próprios. Nesta população houve perdas irreparáveis”, alerta a presidente da APPACDM de Coimbra, Helena Albuquerque. Ao longo do período pandémico, quase todos os voluntários foram dispensados e só agora vão ser reintegrados.
Neste momento, a APPACDM conta com, aproximadamente, 250 jovens integrados em CAO e cerca de 50 em ASU. Helena Albuquerque considera que a integração destes jovens nestes projetos é muito importante, visto que “quando uma pessoa não vê a deficiência, não desculpa certo tipo de comportamentos. A incompreensão é muito maior”. Como tal, o que vai, de facto, ajudar na inclusão é “levar estas pessoas para o meio da comunidade para que se conheça este tipo de deficiência e se consiga lidar com ela de uma maneira natural”. A presidente da associação realça ainda a discrepância entre os efeitos da tecnologia nas deficiências físicas, que permitem que se ultrapasse dificuldades fundamentais, ao contrário do que acontece na deficiência intelectual, que pode ser “descodificada”, mas não “suprimida”.


Leis versus realidade
Helena Albuquerque não deixou de sublinhar a qualidade da legislação portuguesa no âmbito da deficiência intelectual. Afirma, inclusive, que o país tem “uma das legislações mais avançadas da Europa”. No entanto, o sistema falha na aplicação dessas leis à realidade, na sua opinião.
Nos últimos anos houve um grande avanço, de acordo com a presidente, na abordagem às deficiências sensoriais e motoras, porém, destaca o exemplo pessoal: “o meu filho pode subir umas escadas, por exemplo, mas se entrar num museu não entende nada do que lá está dentro”. Com isto sublinha que o mundo está preparado para a deficiência em termos de acessibilidade, mas não de adaptação. A falta de apoio e atenção a estas crianças e jovens nas escolas também tem repercussões no futuro, ao não serem estimulados como deveriam, aponta a dirigente, o que acaba por culminar numa marginalização dessas crianças e jovens.
Com vista a ultrapassar este tipo de questões, a HUMANITAS – Federação Portuguesa para a Deficiência Mental, associação também presidida por Helena Albuquerque, lançou uma petição para a criação do Dia Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual, apoiada pela APPACDM. A presidente das associações considera que “o grande passo é ter um espaço onde se abordam as questões específicas, que não são comuns a nenhum dos outros tipos de deficiência”. Relembra ainda que, enquanto os outros tipos de deficiência têm representação em órgãos de topo políticos e sociais, a representação da deficiência intelectual “fica diluída junto das outras”. Conclui ao alertar que “o problema da deficiência intelectual torna-se cada vez mais urgente de discutir e de analisar”. As 7500 assinaturas necessárias para que a petição siga até ao Parlamento já estão quase reunidas.
“As pessoas com deficiência intelectual ficam mais nesse lugar de “coitadinha” e, aqui, é o contrário. As pessoas podem trabalhar e contribuir”
Miriam Bernardino
A integração das pessoas com deficiência intelectual neste tipo de projetos é feita pela associação com base nos gostos e características de cada um dos integrantes. “Há clientes que começam a ter formação profissional e depois daí fazem um estágio e são encaminhados para as empresas e instituições. Isto é todo um processo que envolve o cliente, a família, a instituição e depois o técnico de acompanhamento”, aponta Tânia Reis. Também a coordenadora da Casa de Chá, Miriam Bernardino considera que “o objetivo passa por potencializar o que eles têm como positivo e ir ao encontro das suas necessidades”, através do contacto com as outras pessoas. A coordenadora acrescenta que “as pessoas com deficiência intelectual ficam mais nesse lugar de “coitadinha” e, aqui, é o contrário. As pessoas podem trabalhar e contribuir”.
Com este género de projetos, as pessoas com este tipo de deficiências conseguem garantir a autonomia que, de outro modo, não conseguiriam, frisa Tânia Reis. Mónica e Ricardo passaram a andar de autocarro sozinhos, viver o seu quotidiano de modo mais autónomo e a ganhar o seu próprio dinheiro, a chamada “gratificação”. Isto permitiu que não tivessem que pedir sempre dinheiro à família, o que foi essencial para a sua independência. Como explica a técnica de integração, este foi um método criado pelo Instituto da Segurança Social, como forma de recompensa pelo trabalho prestado. A presidente da APPACDM de Coimbra realça a importância da continuação deste trabalho: “são jovens que nunca conseguiriam a sua autonomia a nível de mercado de trabalho, mas ali, supervisionados e acompanhados representam um papel fundamental – o da inclusão, um dos principais objetivos da Casa de Chá”, refere.

Nos anos que passaram na Casa, Mónica e Ricardo declaram ter adquirido diversas competências, como aprender a lidar e comunicar com o público e até, no caso de Ricardo, a falar inglês, o que acaba por facilitar o diálogo com os estrangeiros. Os funcionários consideram ainda serem muito queridos pelo público que vai ao estabelecimento, que fica surpreendido com o desempenho de ambos a atenderem às mesas.
De facto, para além de estarem em contacto direto no seu dia a dia com o desafio de ultrapassar a barreira da comunicação (muito presente na vida das pessoas com deficiência intelectual, como indica a presidente da APPACDM de Coimbra), permite ao próprio público lidar com este tipo de deficiência de maneira mais natural. Como lembra Helena Albuquerque, “as pessoas têm que os conhecer, falar com eles e compreendê-los, porque a partir daí a inclusão é fácil”. Tânia Reis conclui ainda ao afirmar que, com esta interação, “a comunidade vê que, apesar das limitações, são capazes”.
“É um espaço que tem tudo a ver com bons sentimentos, que é o que nós queremos. E é uma casa que tem uma capacidade de dar e receber ternura excecional, por todos os motivos. Estão todos em sintonia e é tudo muito natural e simples”, conclui a presidente. Por fim, Mónica assegura que, na Casa de Chá, criou amizades para o resto da vida, repleta de “pessoas incríveis”, sem deixar nunca de ressalvar que “a Casa de Chá sem nós [Mónica e Ricardo] não tinha piada nenhuma”. E quem pode discordar?
“Queremos sempre evoluir e melhorar a qualidade do atendimento, nunca estamos sossegados, há uma inquietude e um desassossego constante e que é produtivo”
Helena Albuquerque

