Cultura

Estagiário do Doutor: “Já não se pode dizer coisas racistas sem ser chamado racista”

André Crujo

Para Sérgio Duarte, comediante do duo Jovem Conservador de Direita, “tudo que está ligado ao CDS é fácil de satirizar”. Espetáculos são criticados por apoiantes do CHEGA. Por João António Gama

Com vários livros publicados, um ‘podcast’ e uma digressão de espectáculos por Portugal, o projeto de comédia Jovem Conservador de Direita é um sucesso de popularidade. Poucas horas antes da apresentação no Teatro Académico de Gil Vicente, Sérgio Duarte, um dos autores do projeto e o homem por detrás do “Estagiário do Doutor”, esteve à conversa com o Jornal A Cabra. Falou sobre a origem da parceria, da presença ‘online’ dos apoiantes do CHEGA e até do falecimento suspeito do fundador de um dos maiores partidos portugueses.

Como é que começou o projeto Jovem Conservador de Direita?

Foi na altura das Eleições Legislativas de 2015, quando se começou a falar na hipótese de uma “gerigonça”. Nós encontrámos eventos das redes sociais onde já havia o “germe” da paranóia que hoje vemos no Facebook. Na altura, não era tanto, mas já havia. Muita gente preocupada com a possibilidade da “geringonça” transformar Portugal numa Coreia do Norte. Então, criámos uma personagem para andar lá a picar, para entrar nesse espírito: um indivíduo que era órfão do governo de Passos Coelho, orfão da ‘troika’, que estava ali. Também preocupado com o que iria acontecer com o país e com todo o bom trabalho que havia sido levado a cabo pela ‘troika’ agora que Portugal se ia transformar numa ditadura de esquerda. Começámos a ter algum impacto. Vimos muitas pessoas a irem à nossa página e a acreditarem que era real, outras que percebiam que estávamos a gozar e que achavam piada aos que acreditavam. Foi assim que o projeto começou a crescer, e surgiu a necessidade de criar textos com mais alguma substância, com uma sátira mais bem sustentada.

O vosso humor é vincadamente político. De que forma é que procuram fazer uma crítica ao mundo político português?

Não é uma coisa em que penso muito. Utilizamos o ponto de vista da personagem para transmitir a nossa opinião de uma forma irónica. É um veículo para comentar a sociedade portuguesa sem nenhuma intencionalidade em específico. Identificamo-nos como de esquerda, mas o nosso objetivo principal é fazer rir. Neste momento, com o advento de personagens como o André Ventura e o Bolsonaro, estamos mais “ativistas” porque eles preocupam-nos.

Interpretas a personagem do Estagiário, que se descreve de uma forma interessante: “orgulhosamente adepto dos três grandes, SLB, FCP e SCP”. Quem é o Estagiário?

O Estagiário é um ‘sidekick’. Acho que é uma componente existencial da personagem, pouco discutida, porque as pessoas focam-se mais nos textos, mas quem acompanha este universo sabe que existe um “Doutor”, que se auto-identifica por “doutor” e trata toda a gente por “doutor”. E um “Estagiário” que não recebe dinheiro e que o acompanha para todo o lado. É um ‘millennial’ entusiasta e precário, que está a fazer pela vida e que não quer levantar ondas. Daí ser “adepto dos três grandes”: é consensual, porque quem gosta de todos está sempre contente.

É uma parede ressonância para o Doutor. No nosso ‘podcast’, esta dinâmica é mais evidente. Sou eu e o Bruno [Henriques, o “Doutor”] a improvisarmos as personagens, sem preparação. Decidimos que temas é que vamos discutir e fazemos a interação a encarnar a personagem. Normalmente, o Doutor é o ‘straight man’ para os disparates que o Estagiário diz, mas por vezes invertemos esse papel. Não é uma coisa muito estanque. Se olharmos para o guião do espetáculo que vamos fazer logo à noite, há lá falas do Estagiário que foram escritas pelo Bruno e há texto do Doutor que foi escrito por mim.

Para resumir, é um idiota.

Vocês os dois já tinham experiência na área da escrita humorística?

Tanto eu como ele já tínhamos feito ‘stand-up’ meia-dúzia de vezes, e também tínhamos blogues e páginas em que escrevíamos, mas nada muito relevante. Eu tinha uma página, o “Corta-Unhas Melancólico”, que usava para ‘sketches’ e pequenas reflexões, mas também escrevia textos políticos. Se calhar, o Jovem Conservador de Direita surge um bocado aqui: quando escrevia textos políticos mais pessoais, surgia sempre gente a querer argumentar e debater comigo. Eu não estava para isso. Percebi que se escrevesse o contrário do que pensava não me haveriam de chatear…

Desde que começaram, quem é a personagem política portuguesa mais fácil de satirizar?

Eu diria que tudo o que está ligado ao CDS é fácil de satirizar.

O Chicão é uma mina.

O Chicão, o Nuno Melo… Há ali uma componente trágica: são pessoas de sucesso, no topo da hierarquia económico-social do nosso país. No entanto, é fracasso atrás de fracasso. Eles tinham nas bases os fascistas que agora estão no CHEGA e diziam-lhes: “Nós pensamos como tu, mas em público não, temos de ser respeitados”, mas isso agora acabou. Estão ali encostados. Não são liberais, nem são sociais-conservadores. Estão à deriva. Como são pessoas cheias de importâncias, senhores doutores, dá gozo ver isso. É uma tragédia engraçada de acompanhar.
De resto, há outros óbvios: os Andrés Venturas desta vida. O PSD deixou de ser fonte de inspiração, infelizmente. Tem uma direção mais convencional e menos trágica.

Soubemos que o vosso recente espetáculo em Caldas da Rainha levantou grande indignação entre os militantes do CHEGA. Costumam estar do lado da liberdade de expressão, mas neste momento estão indignados com o vosso trabalho. O que achas disto?

Eu acho hilariante. O que aconteceu foi que, no espetáculo de Caldas da Rainha – que não estava cheio -, uma das pessoas a assistir era o líder concelhio do CHEGA. Nós não sabíamos que ele estava lá, obviamente. Se tivéssemos sabido fazíamos uma coisa mais personalizada. O tipo foi ao espetáculo sabendo ao que ia, sabendo que não ia gostar, e foi com uma publicação no Facebook preparada para nos criticar e dizer que era uma “vergonha que uma infraestrutura paga com o dinheiro dos contribuintes” pudesse albergar um espetáculo de que ele não gostava. Há sempre esta coisa dos contribuintes estarem a financiar os espetáculos: não estão, mas enfim… O ‘post’ foi publicado cinco minutos depois do fim do espetáculo e fez ‘spoiler’ de duas piadas: as duas únicas referências ao André Ventura, muito subtis. Entretanto, o ‘post’ foi muito partilhado naquele mundo de ‘feedback’ positivo do Facebook. Tivemos gente a fazer queixa de nós à sala de espetáculos, gente a escrever à Câmara de Caldas da Rainha, pessoas que não viram o espetáculo mas que o criticaram à mesma.

É irónico que tenhas falado da liberdade de expressão. Estas pessoas falam muito de liberdade de expressão, que está “cada vez mais ameaçada”. Agora são forçados a tratar minorias de uma forma decente, o que é um atentado à liberdade de expressão. Já não se pode dizer uma coisa racista sem ser chamado racista… No entanto, são perfeitamente capazes de dizer, como disse um apoiante do CHEGA no Facebook, que é “a favor da liberdade de expressão mas que liberdade não é libertinagem”. O que é libertinagem, então? É alguém usar da sua liberdade para fazer uma coisa que eu não gosto. Dito por outras palavras, é dizer: “Eu sou muito a favor da liberdade, desde que só façam coisas que eu gosto”.

Para nós isto que nos aconteceu foi engraçado. Acaba por ser inspiração, e vamos usar esse ‘feedback’ agora em futuras versões do espetáculo, onde vamos incluir mais referências ao CHEGA.

Então vão acirrar a vossa crítica ao CHEGA?

Nós também não queremos manchar o espetáculo, temos uma visão para ele. Pretendemos que seja análise cultural e sátira e não queremos manchar o resto com o André Ventura. Mas sim, acrescentámos mais uma ou outra coisa, para que, caso outro “controleiro” do CHEGA vá ao espetáculo, tenha mais assuntos para falar no Facebook. Também temos de responder às necessidades do mercado.

É esse o espírito do Doutor.

É, claro.

Recebem muitas mensagens de ódio nas redes sociais?

Sim.

De quem é que elas vêm?

Neste momento, sobretudo de pessoas ligadas ao CHEGA. A esmagadora maioria. É um fenómeno interessante porque, antes do sucesso eleitoral do CHEGA, quase que não recebíamos mensagens de ninguém de lá. No entanto, aquilo galvanizou, e todos os dias temos recebidos mensagens de pessoas a mandarem-nos para a Venezuela, pessoas a dizer “façam publicidade ao André que ele agradece!”, como quem diz: “Falem de nós que nós gostamos, mesmo que estejas a denunciá-lo como o vigarista que é!”.

“Qualquer publicidade é boa publicidade”…

E se calhar têm razão, infelizmente, mas também não podemos fugir. Vamos ignorar o André Ventura quando tudo que é meio de comunicação social dá-lhe palco porque vende e porque dá audiências? Seria um bocado ridículo que nós, com a plataforma limitada que temos e onde nos propomos a falar de política e a denunciar o tipo de coisas que ele representa, não o fizéssemos. Não há como fugir.

Nós até tivemos um encontro com o André Ventura, em Lisboa, quando fomos apresentar o livro do Rui Zink, “Manual do Bom Fascista”. Por coincidência, no Chiado, vemos uma comitiva do CHEGA, nas Legislativas. Pego no telemóvel, e vamos ter com ele, com o Bruno já em personagem. Há ali uma interação entre o Doutor e o André Ventura, em que lhe perguntamos o que é que ele quer fazer aos ciganos, se os quer matar… Ele responde: “Obviamente que não, quero é pô-lo a trabalhar!”. Eu pergunto: “Mas como é que os vai pôr a trabalhar?” e a resposta é: “Como você trabalha!”. Aquela argumentação limitada que, para uma pessoa normal que olha para a política de um ponto de vista racional, é absurda. Ele diz que vai pôr os ciganos a trabalhar e que vai prender os criminosos, mas isso são respostas fáceis para questões complexas. Acontece que, depois de publicarmos o vídeo nas redes sociais, começámos a perceber que aquilo que do nosso ponto de vista faz o André Ventura parecer ignorante é tido por quem o segue como uma vitória para ele. Os chavões dele funcionam, são fáceis. Isso foi uma lição para nós sobre como lidar com esses tipos: não partir do princípio que eles têm boa-fé, porque não têm. O objetivo é “destruir”, é ganhar o debate com chavões, sem argumentos nem sustentação, simplesmente para atiçar as bases. As televisões estão agora a ter essa lição, quando o chamam para debater racismo e ele responde que “não é racista, mas gosta de defender os portugueses”. Como é que se argumenta com isto?

Vou ter de te fazer uma questão complexa: é verdade que assassinaram o Dr. Diogo Freitas do Amaral?

[Risos] Há essas alegações, é verdade. Na véspera da morte de Freitas do Amaral, nós fizemos um vídeo in memoriam ao CDS, a decretar o fim do partido. Isso é factual. Se há ligação entre as duas coisas, não podemos saber. Eu acho que não… Mas também não garanto. Em tribunal, acho que somos inocentes.

Já assinaram livros e estão atualmente a fazer espetáculos por todo o país. O que é que guardam para o futuro?

Vamos continuar a fazer o que estamos a fazer. Em princípio, este ano sai livro novo. Vamos andar por aí.

Queres deixar alguma nota à comunidade académica de Coimbra?

O que é que eu posso deixar [pausa]… Aproveitem o tempo em que estão aqui, nesta dimensão paralela em que são adultos mas sem as responsabilidades de adulto. Vão ter saudades disto. Acho eu.                                     

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