Cultura

De leitor a poeta, com a angústia de não ser ninguém

cátia beato

João Rasteiro fez ecoar versos pelas salas do Liquidâmbar. O menino de seis anos que se alimenta de poesia prepara-se para lançar novo livro com a Porto Editora em 2020. Por Cátia Beato

Para beber um café ou conversar com alguém, João Rasteiro visita diariamente a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Foi neste espaço que o poeta aceitou conversar com o Jornal A Cabra sobre a sua infância e as influências que deram origem à sua grande paixão, a poesia.

No Ameal, uma aldeia a vários quilómetros de Coimbra, o único ponto de acesso à leitura eram as Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, que, uma vez por mês, se deslocavam às aldeias. O horário já todos sabiam. Os livros eram, no máximo, seis para cada um. E este foi o primeiro contacto que o poeta teve com a literatura.

Um mês após ter entrado na escola primária, acabou por se inscrever numa das bibliotecas. A partir daí foi “aquilo que ainda hoje sou, um leitor”, afirma. A vontade de escrever começa aos seis anos, quando emerge o seu “gosto completamente divinal” pela leitura. Já era maior de idade quando começou a escrever pequenos textos, não de poesia, mas “pequenos contos de influência policial e mistério”, relembra.

Foi trabalhar após o secundário porque a vida assim o obrigou e já contava três décadas quando se licenciou em Estudos Portugueses e Lusófonos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Conta que a Oficina de Poesia, projeto concebido pela professora Graça Capinha, lhe abriu asas ao sopro das palavras, nas quais descobriu a paixão que o acompanha até hoje.

Sofreu influências de autores como Fernando Pessoa, António Nobre e Guerra Junqueiro. As suas primeiras leituras foram poesias de finais de século XIX e inícios de século XX, ainda com muita carga romântica. Emilio Salgari, Júlio Verne e Simone de Beauvoir são outros dos seus escritores de referência.

Com um gesticular frenético, diz que os poetas escrevem sobre o eixo de três coisas: vida, amor e morte. “No fundo, a arte procura sempre brilhar e ofuscar a morte”. Inspira-se em Bob Pearlman quando deseja que o auge da sua poesia choque “como a um residente de Nova Iorque que chega ao Central Park de manhã e se depara com meia dúzia de vacas ali a pastar”.

Este ano publicou “Levedura”, que forma uma trilogia com dois livros editados em anos anteriores e agora revistos. Radiante com a novidade, anuncia, em primeira mão, que em 2020 vai publicar uma obra reunida na Porto Editora. “Já tem o primeiro manuscrito de provas e são cerca de 480 páginas”, partilha.

O poeta diz que “uma peça de arte, mesmo que seja centrada numa reflexão interior do autor, não deixa de ser uma reflexão sobre o próprio mundo” e que “a arte e a literatura são, então, um ato político”. Num tom mais pessoal, confessa que se alimenta de poesia. “Serve para manter uma determinada chama viva dentro de mim”.

Tanto é capaz de estar um mês sem escrever como pode passar vários dias sem parar. Num processo criativo “caótico”, revê alguns traços de escrita de Herberto Helder nos seus próprios textos. Desabafa que, por vezes, “é a linguagem poética do Herberto que ali está, e isso é trágico”. “Não consigo aceitar esta minha angústia ou deceção de ainda não ter conseguido ser alguém”. Portugal é um país pequeno e a área da literatura é um campo minado, reclama. “É como uma guerra por espaço, em que três ou quatro editoras dominam sem deixar margem de manobra”.

A conversa informal seguiu-se de uma pequena sessão de poesia natalícia no Liquidâmbar, na Praça da República. Dividida em três partes, deu aso a que João Rasteiro declamasse textos da sua autoria e de alguns dos seus escritores preferidos. E foi num ambiente intimista que a noite terminou, com a Casa da Escrita como próxima paragem.

Com Carolina Fernandes

Fotografias por Cátia Beato

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