Cultura

“Stabat Mater”: uma crítica intemporal

Fotografias gentilmente cedidas por Amândio Bastos

Com a aproximação da estreia da peça “Stabat Mater”, a encenadora Ana Teresa Santos e as atrizes Mariana Marçal e Rita Dias falam sobre este desafio. A peça que apelidam de “polémica”, adaptada de um monólogo, pretende trazer uma nova visão do texto. Por Rita Fernandes e Gabriel Rezende

A adaptação do texto “Stabat Mater”, do dramaturgo italiano Antonio Tarantino, vai estar em palco a partir do dia 11 de abril, produzida pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC). Na peça, a vice-presidente do TEUC, Mariana Marçal, e Rita Dias interpretam a personagem Maria em diferentes momentos da sua vida. A peça intemporal está inserida na 21ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra (UC) e vai ter lugar no Teatro de Bolso do TEUC.

O que se pode esperar da peça?

Ana Teresa Santos: Esta é uma peça pela qual sou uma apaixonada. O texto é a história de uma mulher humilde, pobre, de uma classe social desfavorecida. Ela vê-se obrigada a sustentar o filho, é uma mãe solteira sem ter qualquer tipo de ajudas. Tem a fatalidade, digamos assim, de esse filho nascer muito inteligente. Às tantas o filho envolve-se na política, é preso e ela fica sem saber dele. Não sabe para onde foi levado, e toda a peça é, no fundo, a procura dela pelo filho em paradeiro incerto. Nunca nos é revelado onde está, mas certamente terá sido assassinado pela polícia. Não se sabe bem em que meandros da política se envolveu, mas sabemos que terá sido morto por questões políticas.

Rita Dias: Queria também acrescentar que apesar de este ser um texto italiano, escrito nos anos 1980, podem esperar um texto atual. É bastante universal tanto em tempo como em espaço. Acho que por isso as pessoas, de certa forma, se vão identificar com aquilo que estamos a viver, apesar de Portugal neste momento não estar num regime ditatorial.

Mariana Marçal: Por exemplo, enquanto brasileira, sinto muito esta proximidade com o momento político que se vive agora no Brasil. O desespero que é passado pela Maria, tanto pela linguagem que ela usa como pela situação do filho dela, são universais no tempo. Uma pessoa pode ter passado por esta situação há quarenta anos, ou estar a passar por ela agora e daqui a outros quarenta anos ocorre o mesmo.

A peça pode ser vista como uma crítica social, ou uma chamada de atenção?

ATS: Diria que sim. É uma peça polémica, o texto é polémico. Esta Maria é uma personagem muito humilde e por isso muito ignorante. Como é ignorante é racista, xenófoba e homofóbica. É uma personagem pela qual, apesar de todas estas características, conseguimos ter alguma empatia, visto que no fundo é uma mãe que procura o seu filho.

MM: É uma coisa que dói. Nós ouvimo-la a falar todas aquelas coisas e sentimos ódio por ela, mas ao mesmo tempo uma empatia muito grande porque nos identificamos com o sofrimento. Identificamo-nos com aquelas palavras porque, provavelmente em alguma altura da nossa vida, as ouvimos dirigidas a nós. Conseguimos perceber que ela diz aquilo, não porque realmente o acha mas porque o ouviu sobre ela e sobre todos os que estão ao seu redor.

ATS: Ela própria é uma vítima, que é também discriminada. Tudo isso serve para enriquecer esta peça. Esta é uma personagem extremamente complexa e contraditória, muito rica.

O que é que está por detrás do título da peça?

ATS:Stabat Mater” é um hino católico, proibido durante uma época. Em latim significa “Estava a mãe” e esta é, de facto, uma mãe. Ao longo do texto, há uma série de referências bíblicas: a nossa personagem principal chama-se Maria, o nome da mãe de Cristo, ela faz muita vezes referência ao “pobre cristo do meu filho” e temos ainda uma Madalena que esteve envolvida com o filho. Há um grande paralelismo entre esta figura universal que é a Maria, a mãe de Cristo e a história desta Maria humilde, que podemos ainda hoje encontrar nas ruas. Daí achar que a peça apelará em qualquer tempo e em qualquer lugar aos espectadores.

Existem algumas influências que tenham tido em conta para esta adaptação?

ATS: Não necessariamente. Este texto foi escrito para uma só voz, como diz o autor Antonio Tarantino. Especificamente uma voz feminina. O que acontece é que esta mulher ao longo da obra vai recordando todas as pessoas do seu círculo, como por exemplo o seu amante que é pai do filho e nunca o reconheceu ou a senhora da Segurança Social que a ajuda. Há uma série de lembranças e personagens que vão sendo invocadas, o que fiz foi adaptar e trazer essas personagens para cena. Elas não existem no texto original, a não ser pela voz da Maria.

Qual a maior dificuldade que estão a encontrar na representação das vossas personagens?

RD: Neste momento como estamos perto da estreia já não há grandes dificuldades, porque é suposto já nos identificarmos bastante com ela. No início foi muito difícil, como a Teresa disse, esta Maria tem uma série de valores aos quais, enquanto coletivo, somos completamente opostos. É árduo proferir algumas das falas como se fossem nossas. Tive também o obstáculo da forma de falar, que é mais humilde e do campo. Para mim, que cresci numa cidade, adotar um estilo mais rural e com muito calão foi complicado.

ATS: É de facto uma linguagem com muito calão. Pode até chocar os espectadores. Sente-se mesmo um certo constrangimento com este tipo de palavras.

MM: Eu enquanto mulher, e uma mulher lésbica, tive algumas dificuldades com falas dela. Peguei em todas essas coisas e transformei-as num eco das minhas experiências. Acabei por me divertir, ao saber que estava a conseguir pegar em tudo o que de mau já me foi dito e conseguir expulsar tudo o que ouvi e vivi de forma a fazer uma crítica subtil. Mesmo enquanto brasileira, enfrento em Coimbra muitos episódios de xenofobia que ficam nas entrelinhas. Há ainda o desafio do português de Portugal, mas acho que já consegui superar isso.

Quais é que são as diferenças desta adaptação para outras que já fizeram?

ATS: Só conheço uma encenação do texto, mas não uma adaptação do mesmo. A primeira em Portugal foi feita pelos Artistas Unidos. A diferença é que havia uma única atriz em palco a protagonizar um monólogo extenso. Aqui o que acontece é haver todas as outras personagens em palco.

Numa comparação com outras peças em que já atuaram, quais são as diferenças que apontam?

MM: É uma diferença completa. Para se conseguir fazer este trabalho, tem de se estar completamente imersa na personagem, e é muito difícil. Acho que demanda uma dedicação e uma entrega que nunca tínhamos experienciado antes.

RD: Estou no TEUC há três anos, por isso não sei muito das peças que foram feitas antes, mas neste tempo a peça que eu diria que é mais próxima foi “Estepe”. Era também uma adaptação, não de um, mas de dois ou três textos. Nos tempos mais recentes, é a primeira vez que estamos a fazer um texto praticamente na íntegra. Os últimos trabalhos têm sido mais de improviso e de movimento e corpo. É um trabalho muito diferente.

Para ti, enquanto atriz, sentes que esta personagem exigiu mais de ti do que outras que fizeste? Sentiste uma grande mudança?

RD: Sim. Sou mais do teatro de corpo, de movimento. Ainda não tinha sido propriamente uma personagem. O que fiz era mais corporal, não tinha uma identidade definida. Estar a ser outra pessoa, ainda por cima alguém tão diferente de mim, está de facto a ser um desafio. Mas é para isto que cá estamos.

No geral, como é que sentem a receção do público ao trabalho desenvolvido pelo TEUC?

MM: Acho que é muito boa.

RD: Temos um público mais específico. O nosso público infelizmente não é constituído pela maioria dos estudantes universitários. Temos um pessoal que geralmente são as pessoas que vão ao CITAC, ao GEFAC e a outras iniciativas, no Liquidâmbar, por exemplo. É um nicho e gostávamos também de chegar a mais e outros públicos, mas dentro daquele que já nos conhece, a receção costuma ser boa.

E o que é que se procurou nas personagens e nas atrizes?

ATS: A verdade, acima de tudo. Este conceito da verdade é muito complexo no trabalho de um ator. O que procurei, quis e sempre pedi ao elenco todo, foi que houvesse verdade. Tinha consciência de que, tal como estavam a Rita e a Mariana a dizer, esta coisa de à partida não serem e não se identificarem com as ideias daquela mulher era um desafio que lhes estava a propor. Isto permite algo fascinante, porque o ator depara-se sempre, ao longo da sua profissão, com esta coisa da verdade e de um não julgamento da personagem. Se o ator tem de ser aquela personagem, a partir do momento em que a julga, está a fazer um mau trabalho. Para mim, o mais importante é ir buscar a verdade. Não sei bem onde, porque estas coisas às vezes não são claras, mas é isto o que me interessa, sobretudo no teatro. Tal passa por uma grande capacidade de tolerância para com o próximo, de observação, de descoberta, de reflexão. Foi isto que gostei de lhes propor e que acho que sinceramente foi muito bem respondido. Estou muito grata por trabalhar com pessoas tão diferentes e contrárias às ideias daquela mulher.

Rita, referiste há pouco que existe certa falta de contacto entre a população e o teatro. Como é que as secções culturais da Associação Académica de Coimbra (AAC) podem fomentar este contacto?

RD: Se soubéssemos como, acho que já teríamos mais público [risos].

MM: Não é por falta de vontade, é por falta de publicidade dos grupos de teatro, pela Universidade de Coimbra, pelos grandes meios de comunicação e de informação da cidade. Sinto que existe uma grande movimentação e oferta de eventos artísticos e culturais. Quando cheguei cá, não foi esse o meu primeiro contacto, foi com a praxe, com a questão das tradições da universidade. Para chegarmos a um maior público, para que mais pessoas conheçam o nosso trabalho, teríamos de ter uma relação de maior parceria com a UC, com a cidade e com quem acolhe as pessoas que chegam.

RD: É verdade. Há muita gente que só chega ao curso de formação do TEUC no terceiro ano de faculdade. Passam dois anos sem saber que existia teatro na AAC. E quem diz teatro, diz também outras atividades. Há de facto uma falta de divulgação do que acontece na casa. Como o fazer, é uma pergunta complicada. Estudei no Polo III, e lá é raríssimo chegar alguma informação cultural, mesmo cartazes. Já na Faculdade de Letras da UC veem-se às carradas. Lá não chega. É fixe fazer publicidade pelas redes sociais, mas também é preciso que as pessoas tenham uma predisposição para isto, porque se não forem pessoas que procurem ativamente esse tipo de coisas, também não vão aparecer.

Mas acham que falta uma certa “preparação cultural” da população em geral?

ATS: Acho que sim. Deveria haver mais incentivo e apoio à cultura. É preciso dizer que estes grupos têm muita história. Até 2017, a Fundação Calouste Gulbenkian apoiava estes organismos da AAC. A instituição não pertence ao Estado, é privada, mas apoiava com uma verba anual muito significativa. Sempre que há produções, de qualquer um dos organismos, há sempre uma grande ginástica. As pessoas têm de fazer milagres para que as coisas aconteçam. De facto, as coisas não podem acontecer se não houver apoio. É fundamental passar esta mensagem e não é só para os organismos, é no geral para a cultura no país. É muito importante que se divulgue casos como o do TEUC, do CITAC e do GEFAC, mas é preciso mudar esta mentalidade, é urgente fazê-lo, para o futuro.

MM: É um ‘descaso’ com grupos e associações que existem há 80 anos, no caso do TEUC, e que são património cultural. Existimos, estamos aqui e movimentamos a cidade. Já fizemos muita coisa, fizemos história que não cabe em palavras. Chegámos em 2017 e perdemos o nosso financiamento, mas continuamos a fazer coisas. A sala do TEUC está a cair aos pedaços. Falamos com a reitoria, falamos com a Direção-Geral da AAC e ninguém faz nada, torna-se complicado. Fazemos e conseguimos porque amamos o teatro, porque amamos a arte e o nosso trabalho. Estamos dispostos a fazer e manter o TEUC vivo, por isso conseguimos. Falta mais carinho na relação da cidade com os organismos académicos.

Fotografias gentilmente cedidas por Amândio Bastos

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