Coube à ex-ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, a apresentação do livro “Luanda, Lisboa, Paraíso”, de Djaimilia Pereira de Almeida, editado pela Companhia das Letras. A obra venceu o Prémio Literário Fundação Inês de Castro 2018. O escritor Pedro Mexia falou sobre o tradutor e poeta José Bento, a quem foi atribuído o Tributo de Consagração Fundação Inês de Castro 2018, pela divulgação da cultura hispânica em Portugal. A cerimónia de entrega dos dois galardões teve lugar no último sábado, dia 30 de março, na Quinta das Lágrimas, em Coimbra. Por Isabel Simões
No processo de escrita da obra “Luanda, Lisboa, Paraíso”, a história de Cartola, o ajudante de enfermeiro angolano “que era tudo menos um escravo”, cruzou-se com a música “O Mundo é um Moinho” do sambista brasileiro do mesmo nome, contou-nos a autora Djaimilia Pereira de Almeida.
Tal como Cartola escreveu na canção, a personagem principal que veio de Angola com o filho Aquiles em busca de cura, viu “triturados” os seus sonhos e reduzidas “as ilusões a pó”. Em Angola deixou a mulher doente, Glória, e a filha Justina a cuidar dela. Ao Tejo atirou a Cartola que lhe deu nome, virando as costas ao rio de uma cidade “onde a hospitalidade não habita”, como mencionou Isabel Pires de Lima.
A escritora, em entrevista, ao Jornal Universitário de Coimbra – A Cabra.
Como escritora, qual a importância que tem para si receber este prémio?
Com o meu primeiro livro “Esse Cabelo” recebi o Prémio Novos 2016. Nunca tinha recebido uma distinção tão importante e honrosa como o Prémio Fundação Inês de Castro. É uma alegria muito grande, foi uma surpresa completa, muito boa e feliz. Quando estou a escrever nunca estou a pensar nisso, mas é uma coisa que me incentiva a continuar.
Tem mencionado que escreveu muito de forma académica e que só depois a escrita literária surgiu – momento a partir do qual tudo o que tinha aprendido começou a aparecer. Como é o seu processo de escrita?
Estive mais de 15 anos na universidade, o que permitiu concluir um mestrado e um doutoramento. Durante todo esse período escrevi sobretudo de forma académica e para a universidade. Só quando concluí os meus estudos é que comecei a tentar escrever de uma outra forma. Hoje em dia, já passados muitos anos desde que saí da universidade, sinto-me muito distante do tom e dos temas que estudei, mas é curioso ver como as coisas que aprendi enquanto estudante assomam quando estou a escrever. Surgem, no entanto, transformadas noutras coisas alteradas. Acho que não escreveria da maneira que escrevo hoje se não tivesse esse passado do qual já me sinto distante, sem esquecer, contudo, que tudo faz parte de mim.
Agora dedico-me completamente aos livros, é tudo o que faço. Escrevo muitas horas por dia, é uma vida pouco interessante. Por norma faço mais do que uma coisa ao mesmo tempo. Costumo ocupar-me de dois projetos e, quando estou cansada de um, vou para o outro, mas é uma forma de vida de grande solidão e fechamento.

Necessita então de silêncio para escrever?
Oiço música constantemente enquanto escrevo. Este livro tem uma banda sonora, o que é curioso para mim porque o livro está publicado e anda por aí. Voltando a essa banda sonora, regresso imediatamente aos ambientes do livro. Acredito que tal aconteça porque a música me ajudou muito a escrever, transparecendo numa certa musicalidade que o livro tem. Escrevo sempre a ouvir música. O silêncio é importante no sentido em que preciso de estar sozinha. Aliás, não ouço só música, ouço muita rádio e entrevistas feitas a muitas pessoas. Muitas vezes ponho as pessoas a falar enquanto estou a escrever. É como se, dentro da minha casa, do meu escritório, estivesse a reproduzir o que se passa num café. Como se lá estivesse, sentada numa mesa a escrever, e houvesse conversas à volta. Não ligo ao que estão a dizer mas gosto de sons humanos à minha volta.
E como é que as histórias começam a aparecer na sua cabeça? Há escritores que primeiro escrevem um guião e depois vão preenchendo os espaços. Como é consigo?
Não faço nada disso, tenho de ter uma noção mais ou menos clara de alguma linha mas não faço guiões ou grandes planos. É um aspeto que me interessa na escrita de outras pessoas: aperceber-me de que o autor foi descobrindo o livro que estava a fazer enquanto o fazia. É uma coisa que gosto de encontrar noutros escritores e portanto tento fazer isso também. O livro vai aparecendo e as personagens vão tomando conta de mim. Muitas vezes os escritores dizem isto e depois acusam-nos de serem tontos, de dizerem que as personagens os conduzem. O “Luanda, Lisboa Paraíso” deu-me esta sensação pela primeira vez, pois senti-me realmente acompanhada por personagens. A certa altura, à medida que vamos escrevendo sobre elas, assim que lhes tocamos, mal nos aproximamos delas, escapam-se e fecham-se. Então, estabelece-se uma relação estranha entre a pessoa que está a escrever e estes seres que não existem, imaginários… É uma espécie de toca e foge. Uma espécie de jogar ao gato e ao rato. Um jogo de escondidas em que é preciso ir atrás das personagens em que elas se esgueiram.
As personagens habitam o seu espaço do dia a dia, cruza-se com elas na sua casa?
Não (risos). Não vivo numa casa fantasma mas a verdade é que têm realidade suficiente, por exemplo, para num momento feliz eu pensar: “olha, o Cartola havia de gostar de estar aqui”, ou ir a passar na rua, ver alguém e pensar: “aquele senhor podia ser o Cartola”. Também me acontece terminar o livro e ter saudades, algo que me vem dos dias que passei na companhia destas pessoas, a tentar perceber o que elas pensavam. Sobra uma espécie de ressaca daquela companhia.
“Escrever é uma coisa que me dá uma grande alegria. Aliás, é essa a minha principal motivação”
Posso concluir que, para si, a escrita não é um ato difícil como para outros escritores que deitam fora, voltam ao texto e o reescrevem?
Já o foi no passado. Era um processo tremendamente complexo e difícil ao ponto de me ser muito complicado escrever uma página e levar meses para escrevê-la. À medida que se foi tornando cada vez mais ficcional tornou-se menos árduo. mas tal não significa que precise de fazer muitas versões; pelo contrário, deito muita coisa fora, mas consigo alegrar-me enquanto estou a escrever. Escrever é uma coisa que me dá uma grande alegria. Aliás, é essa a minha principal motivação.
Quando na sua infância viajava para a cidade de Lisboa, a escrita já fazia parte do seu imaginário?
Começou um pouco mais tarde, tive aquela coisa que acontece com muitos escritores. Quando era pequenina tinha jeito para composições e ganhei prémios na escola por causa disso, era muito boa a português. Não gosto muito de falar disso porque acho que não há uma grande ligação com o que faço hoje. No entanto, foi muito importante a maneira como as pessoas à minha volta me incentivaram e deram coisas a ler. Eventualmente, o meu percurso escolar divergiu um pouco, porque estudei ciências. Só ao entrar na universidade é que voltei a estudar literatura, mas sempre querendo escrever. Era algo que aspirava desde que ingressei no curso.
Na sua mensagem de agradecimento de hoje falou-nos de uma escritora que conheceu através do tradutor José Bento, a quem foi atribuído o Prémio de Consagração pela divulgação da cultura hispânica. Que livros são esses pelos quais passou e que a convidaram a estudar literatura?
É sempre das perguntas mais difíceis para mim porque foram muitos. Nunca sei a partir de quando é que estou a falar, fui sempre de diferentes leituras com diferentes interesses, em diferentes momentos. A certa altura, Fernando Pessoa transformou-se numa referência muito importante para mim. Nos primeiros anos de universidade, talvez autores como Raul Brandão, ainda hoje um dos meus autores portugueses favoritos. Tanta gente… é muito difícil.
Estudou literatura portuguesa, para além dos autores que mencionou mais algum autor português a que regresse frequentemente?
Sim, muitos: Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Camilo Pessanha, de quem gosto muito. Tantos do século XX que não me ocorre nenhum. Herberto Hélder, muitos poetas… Não vale a pena mencionar mais nenhum porque são inúmeros. Cada vez leio mais, cada vez regresso mais a essas leituras. Gosto muito de Sá de Miranda. Há também literaturas de outros países que são importantes para mim. Hoje em dia leio muito Flaubert. Para a escrita deste livro certos textos do autor francês foram muitos importantes.
O que pode revelar sobre o seu dia de trabalho, uma vez que se tornou numa operária da escrita…
(Risos) Acho que não é a melhor palavra, operária não.
Digo operária porque se dedica somente à escrita, é nesse sentido…
Não, não, não. Quando digo operária é simplesmente porque acho que um operário tem um trabalho muito mais… Se eu trabalhasse numa fábrica, o meu quotidiano era muito mais duro.
“Cada capítulo tinha uma música e se não fosse com música não funcionava. É difícil para mim conceber o livro sem isso”
Como é o seu dia?
Não tem interesse nenhum. Quando estou realmente dentro de um livro escrevo muitas horas, umas dez horas e depois fico muito cansada. Descanso, vou dormir, no dia seguinte leio o que fiz no dia anterior. Vou lendo em voz alta alguns capítulos, às vezes gravo os capítulos que vou fazendo e ouço. A partir de certa altura já não consigo ouvir, já me faz confusão. São muitas horas em frente ao computador e pouco mais que isto, mas sempre em casa.
Mencionou há pouco que este livro tem uma banda sonora. Que banda sonora é essa?
Sim, mas há muitas… É uma parte indissociável do livro, pelo menos para mim. Durante muito tempo sempre que lia o livro em voz alta, era preciso que estivesse a tocar alguma dessas músicas. Cada capítulo tinha uma música e se não fosse com a música não funcionava. É difícil para mim conceber o livro sem isso. Há um cantor que tem o nome da personagem do livro. Um sambista muito importante, um grande, diria mesmo gigante, brasileiro chamado Cartola.
A música dele foi muito importante enquanto fiz este livro. O nome do Cartola é, por isso, uma homenagem indireta à vida dessa figura. Há outras referências, contudo: desde fado a Strauss – de tudo um pouco. Música tradicional africana, do Mali, de Moçambique, da Angola antiga e música do tempo do Cartola. Música que as personagens ouviriam, algo que se justifica logo na abertura do romance, narrativa que se inicia com os protagonistas a ouvir música numa festa. Também não falta música popular, que não se esgota nos países de expressão portuguesa dos anos 50, 60 e 70 do século passado.
Tem necessidade de voltar a esses sons ancestrais, quase uterinos?
Durante muito tempo, não conheci essa música, e só a descobri há uns dez anos. Esta descoberta é essencial, pois revela um certo gosto particular de ouvir música que coincide, na minha vida, com começar a escrever de forma literária. E as duas coisas são para mim indissociáveis de uma procura qualquer prévia ao meu tempo de vida. Qualquer coisa relacionada com os meus antepassados, uma busca que tem a ver com a descoberta da música. E por isso é que a música me acompanha tanto até agora.
Sei que é muito difícil para um escritor catalogar-se. Alguns escritores africanos praticam uma escrita a que chamamos realismo fantástico. Insere-se nessa corrente?
Reconheço esse traço em alguns autores de que gosto bastante, mas até agora não me aconteceu. Para mim, não há regras nem limites e uma das coisas que me faz gostar de escrever é tudo ser possível. A história pode ser exatamente como eu entender. Não estabeleço nenhum limite à partida. Até agora, o que escrevi não tem esse traço. Mas não sei o que vou fazer a seguir.
Disse que normalmente tem mais do que um trabalho em mãos. Escreve dois livros ao mesmo tempo?
Gosto de ter dois projetos que não precisam de ser dois romances. Porque há outro tipo de coisas que gosto de escrever também. Posso estar a escrever um romance e redigir um ensaio longo sobre qualquer coisa, ou posso estar a fazer colagens, que é uma atividade que descobri e que gosto muito de fazer. É também algo que me tem ajudado a escrever. Muitas vezes dedico-me a certos projetos de colagem enquanto faço livros. Gosto de estar dedicada a mais do que uma coisa ao mesmo tempo até para não me tornar tão obsessiva, para ter uma espécie de respiradouro.
E essas colagens são uma forma de arte contemporânea? De colagens de textos?
Para começar, não são arte, são coisas feitas a partir de recortes de revistas antigas de todo o género que depois componho e me ajudam muito visualmente até a conceber os próprios capítulos. Faço estes trabalhos manuais pelo gozo de os fazer, sem interesse de os mostrar a ninguém.
“São as histórias que andam à nossa volta, por todo o lado, no comboio, no autocarro”
Ainda não expôs?
Não, não, nem penso nisso. Não tenho essa veleidade.
Certamente teremos outro trabalho em breve. Sei que não gosta de falar nisso. Já tem alguma personagem que esteja a ocupar o seu espaço?
Sim, estou a fazer um livro neste momento. Esse é o tal livro sobre o qual não gostaria de falar. Mas já toma conta dos meus dias.
Representa uma pessoa importante para a sua comunidade. Começa a sentir o peso disso ou é isso não a afeta?
Acho que não sinto ou, pelo menos, tento não sentir. Há pessoas mais novas do que eu que me fazem chegar a ideia de que é importante para elas que existam pessoas como eu que fazem o que faço. No entanto, o romance exige um certo estado de espírito, em que é preciso que eu me proteja de algum modo desse género de responsabilidade ou expectativa no ato da escrita, caso contrário, torna-se muito difícil. E, para mim, a maneira de lidar com isso, ainda que não tenha vivido muito esta experiência, é embrenhar-me nos livros. Porque, de facto, faço livros porque adoro livros. Sou mesmo uma daquelas pessoas de livros, que só pensam em livros a toda a hora. Então, o que gosto é de os fazer. E de perceber como é que eles são feitos. Esse trabalho, essa absorção, é sobretudo o que me interessa antes de mais nada. A pessoa tem de descobrir a maneira de estar à altura das oportunidades que tem, das expectativas que recaem sobre ela. Mas no ato de escrever, o que me interessa é pensar: “como é que eu escrevo esta história?”, “como é que eu faço este parágrafo?” e “como é que mostro o que quero mostrar?”.
Pela apresentação que Isabel Pires de Lima fez do seu livro tornou-se evidente que a Djaimilia tem um conhecimento profundo da vida de quem anda entre países e chega a um lugar do qual já tem uma ideia, confrontando-se depois com realidades difíceis. Essas histórias chegaram-lhe de alguma maneira?
Tenho e conheço muitas histórias diferentes. Conheço-as porque são também histórias da minha gente. Chegam-me por conhecidos, por pessoas próximas e também porque vivo na cidade e durante uma grande parte da minha vida residi nos seus subúrbios e essas histórias estão ali para quem as quiser encontrar. São as histórias que andam à nossa volta, por todo o lado, no comboio, no autocarro. Em todo o lado, se estivermos atentos, as histórias estão ali. Por isso não é muito difícil, o que é preciso é uma certa curiosidade para pensar quem é esta pessoa, porque é que ela está aqui, donde é que ela veio, de onde é que ela poderia ter vindo, porque veio, como é que se chama… Tem a ver com isso.
Como se vê daqui a uns anos, depois de muitos livros e de muitas escritas, já teceu alguma vez uma imagem do futuro?
Não (riso). Nunca penso nisso. Não, não tenho imagem nenhuma. Espero que a vida me permita continuar a escrever e espero escrever sempre com alegria. Se eu puder traçar um desejo, é esse.
Fotografia por Isabel Simões
