Narrativa critica diversos discursos discriminatórios presentes na sociedade. Com inúmeras técnicas, Albano Jerónimo conquistou a atenção do público teatro académico. Por Gabriella Kagueyama
No âmbito da 4ª edição do Festival bianual Encontros de Novas Dramaturgias (END), que desfruta do Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV) e de outros edifícios culturais da cidade de Coimbra, o espetáculo “Veneno” ocupou os palcos do TAGV na noite de quarta-feira, dia 28 de março. Sob o texto de Cláudia Lucas Chéu, Albano Jerónimo ficou a cargo da encenação e da interpretação na forma de um monólogo.
A peça retrata as consequências que o ambiente familiar sofre após o desemprego de um pai em sua meia idade. Após o assassinato da esposa e o amante, o pai sequestra os três filhos e desabafa de modo desordenado e através de um monólogo, sobre os factos que o fizeram chegar àquele cenário. O personagem interpretado por Albano Jerónimo, ilustra a repercussão que a situação trágica tem no emocional do homem e o estado alcóolico que o faz atingir.
O espetáculo inicia-se com o personagem a reproduzir o discurso de Cristiano Ronaldo quando Portugal foi campeão europeu. O entusiasmo toma conta da plateia quando um homem vestido de mulher interage com o público a dançar pelos palcos e cantos do TAGV. Com os espectadores já imersos na peça, a encenação desemboca no personagem a monologar sentado numa poltrona e rodeado por garrafas de bebida alcólica, por um cigarro e um cão.

A sequência das cidades nas quais “Veneno” vai ocupar os palcos segue uma lógica não intuitiva. O grupo Teatro Nacional 21 priorizou as apresentações nas cidades periféricas e suburbanas do país e só vai chegar às grandes cidades como Porto e Lisboa no fim da turnê.
Através de uma entrevista para o Jornal Universitário de Coimbra – A Cabra, Albano Jerónimo descreve a experiência como intérprete e encenador de “Veneno”.
Qual a crítica que a peça pretende fazer?
Enquanto veículo de comunicação, interessa-nos comunicar o personagem da forma como ele se expressa: grotesca. É de propósito que expomos esse indivíduo que se comunica desta forma primária. Como é incapaz de comunicar, o personagem entra numa espiral de dialética onde acaba por se consumir a si próprio. Há uma necessidade tremenda de trazermos à superfície os discursos homofóbicos, racistas, sexistas e violentos do personagem. Outro objetivo, é expor a artificialidade. Daí o cabelo e o bigode do personagem serem falsos. É uma composição plástica e ‘fake’. O indivíduo tem a incapacidade de comunicar, de se fazer entender, mas ao mesmo tempo não perde a urgência de o fazer. E portanto, utiliza mecanismos que o auxiliam na comunicação como o álcool e a violência.
Esse texto nasce a partir da realidade suburbana. Queremos expor as realidades das subculturas que estão à volta das grandes cidades. Quisemos trazer à superfície a maravilha das realidades que estão ao redor das grandes urbes. Também fizemos um levantamento de crimes altamente violentos praticados nos subúrbios que inspiraram a narrativa da peça.
Qual o “Veneno” que o roteiro pretende passar para o público?
É o veneno deste raciocínio grotesco do personagem. E não é só um veneno em específico, mas é o veneno social, o veneno familiar, da decadência da família por exemplo. Há um veneno todo espalhado e, na narrativa, esse veneno é o que mata o próprio personagem.
De que forma acha que o personagem o enriqueceu como pessoa?
O que mais enriquece, no geral, é esse confronto diário com o personagem e o público. Portanto, tem a ver com essa dinâmica de cena. Partimos de um momento mais lúdico no inicio, no qual o público é convidado a entrar na narrativa através de um recurso cómico e ligeiro, para depois chegarmos ao público com a narrativa mais densa. Então, o que me enriquece é essa linguagem com o público. É a forma como esse espetáculo e essa personagem chegam ao público. E isto é sempre novo. Depende completamente do momento e varia entre as sessões.
Relativamente ao facto de a câmera estar voltada para o personagem durante todas as cenas, qual o objetivo que se pretendia com essa técnica?
A ideia de câmera brinca com a ideia de camadas. Começa com o espetáculo num plano mais aberto e depois acabamos num plano fechado. A linguagem de câmera está sempre virada para o pai. Começa num ambiente fora da casa, aberto, no qual o personagem está numa tabela de basquetebol e culmina ao fim da peça, focado na cabeça no pai. E, durante a narrativa, percebe-se que estamos a entrar cada vez mais na cabeça do personagem, na sua mentalidade e intimidade. E paralelamente, o movimento de câmera tem a ver com isso.
Dada realidade dos ecrãs que temos atualmente, quisemos brincar um pouco com isso. Então temos o dispositivo teatral, que se dá quando o ator está no palco e temos o dispositivo cinematográfico em que o ator tem outra expressão exibida através do ecrã. E eu garanto que até o final do espetáculo, 95% do público vai estar a olhar apenas para o ecrã.
O que significa aquele homem vestido de mulher no início do espetáculo a dançar?
Era uma projeção. Não consigo responder quem era. Mas foi uma manobra de direção de cena para criar possíveis imagens na cabeça do público. Pode ser a esposa, um alter ego, uma projeção dele, uma memória ou o horror que significava para o personagem um homem vestido de mulher… Enfim, poderia ser qualquer coisa.
Fotografias gentilmente cedidas por Claúdia Morais, tiradas durante o ensaio da peça
