Cultura

Festival Apura foi ode ao ‘underground’

André Crujo

Três dias de cultura alternativa inauguraram edição piloto do festival. Entre fusões de estilos e várias localizações, o rebuliço fez-se ouvir pela cidade fora. Por Vittorio Alves 

“Eles vão partir a casa ao meio”, declarou Lia Cachim, organizadora do Festival Apura. A banda a qual se referia, Motim, estava pronta para ocupar a sala principal da República do Bota-Abaixo. Minutos antes, a festa havia sido interrompida pela polícia. Os Bairro Novo estavam a espantar todos com a originalidade de um grupo com menos de um ano de idade. Os enfardados entraram então na amálgama de corpos em frenesim, eles próprios frenéticos, e não sossegaram até que o silêncio fosse rei. Quando os ânimos voltaram a inflamar, a jovem banda alentejana voltou para baixo dos holofotes e deu cabo àquilo que tinha começado. Mas, tanto os polícias recém despachados, quanto as ruas da Alta de Coimbra, não contavam com o que estava por vir.

Os Motim vieram como a quarta banda do primeiro dia do Festival Apura. Os rapazes de Aveiro circulam pelo ‘underground’ há dez anos. O vocalista do grupo, Zyon, contou que, na procura de uma identidade musical, o grupo passou por incontáveis estilos, a começar pelo ‘punk rock’. “Hoje produzimos uma música um pouco mais elaborada. A partir do ‘punk’, fomos para uma vertente mais ‘hardcore’, ‘metalcore’, ‘rock and roll’”.

Não há camisa de força para o som dos insurgentes, e os diferentes estilos fizeram a República do Bota-Abaixo estremecer em regozijo. Apesar da expressividade ‘hardcore’ dos Motim ter cativado o público, Zyon revelou que não consome o tipo de música que os Motim produzem, mas géneros “mais ‘soft’”.

Fotografia: André Crujo

Um lugar ao sol poente

Antes de a noite chegar, Lia Cachim já avisava da vista da qual a Bota-Abaixo dispunha. Do quarto de onde foi tirada a foto do primeiro álbum de Zeca Afonso, espreita a Torre da Universidade de Coimbra. Com essa vista, a Banda de Segunda estreou o festival. Fazem parte da Academia de Música de Coimbra e apresentaram alguns ‘covers’. O concerto teve um som mais calmo. Como disse Lia, é o tipo de música que “toda a gente gosta de ouvir”. Num dado momento, o casamento do ‘reggae’ com o ‘rock’ foi consumado. Os Soul Freedom regaram o pôr do sol com a sonoridade que o momento pedia.

Os Bairro Novo viram todo um aglomerado de estranhos entoarem o refrão de uma das suas músicas eleitas naquela noite pela Bota-Abaixo como mais emblemática. O vocalista Daniel Salgueiro fez repercutir por cada sala as suas influências ‘grunge’ dos anos noventa. Para o jovem de 22 anos e seus companheiros, tocar fora do Alentejo mostrou-se um sonho realizado, ainda para mais como nome no circuito de cultura alternativa das Repúblicas.

Após o concerto dos Motim, a noite foi encerrada pelo ‘DJ set’ de Alex o T-Rex, com uma mistura de ‘funk’, samba e todas as boas vibrações dos anos oitenta. Já previa Lia: “são aquelas ‘vibes’ muito boas às quais tu queres dançar numa República com esta vista sobre Coimbra”.

Quando o vinho é servido, sobra sempre uma gota que escapa e tinge o rótulo. A cor que resulta é muito bonita

Com boa música e arte encho uma tarde

O palco do primeiro dia viu o seu palco fragmentado em vários outros espaços com o alvorecer do segundo. A República da Praça espalhou pelos seus cantos e quartos manifestações plásticas, da fotografia ao desenho abstrato.

Alexia Sera confiou ao canto de uma sala as suas ilustrações e pinturas. O processo de produção insólito da artista é o que a distingue. Os seus traços finos e certeiros são arrematados com vinho branco ou tinto. “Quando o vinho é servido, sobra sempre uma gota que escapa e tinge o rótulo. A cor que resulta é muito bonita”.

Já no quarto em frente é difícil encontrar um espaço de parede que não grite expressividade. Quem entra lê logo “A Mulher de César não basta ser séria, tem de parecer séria”. Trata-se do título do projeto da artista Beatriz Garrucho, que surgiu do impulso de “levar as mulheres a olhar para aquilo que são os seus ancestrais, para os seus hábitos e para o seu contexto social, e lembrá-las daquilo que elas acreditam”.

O engajamento social da artista gera-se da necessidade de reagir à incongruência entre o discurso defendido pela juventude e as suas práticas corrompidas por um contexto social patriarcal. Beatriz Garrucho afirma que “quando chegamos a este mundo é-nos imposta uma maneira de ser e de coabitar”. Para isso, ela responde que “há mesmo uma ruptura que deve ser feita, tanto nas mulheres, quanto nos homens”.

Não é só o público que recebe. Foi um festival muito bonito nesse aspeto

Às mulheres, a artista deixa um desafio: “desenhem a vossa vulva”. O desenho, esclarece Beatriz, vai mostrar a quantidade de conflitos que elas têm para consigo mesmas. Seu apelo é de que as mulheres busquem nos seus corpos a verdade e que, “através de suas dores físicas, consigam perceber em que lugar é que elas estão e qual é a sua voz verdadeira”.

A noite dos jardins encerra a primeira edição

O terceiro dia de festival quedou-se pelos jardins da Associação Académica de Coimbra. Os Lazy Eye Society não encontraram paredes que os contivessem e fizeram repercutir o seu som por toda a cidade de Coimbra, naquilo que foi “um dos melhores concertos da banda”, pelas palavras do vocalista e organizador do Apura, Bernardo Rocha.

Fotografia: André Crujo

Com influências que vão dos Sex Pistols à música intervencionista de Zeca Afonso, os Paradigma fizeram palpitar a relva com temas que dialogam com o que os rodeia. “Não falar nos problemas do mundo é esquisito”, explica o vocalista Miguel Araújo. Justiça social, fraternidade e liberdade são algumas das forças motrizes que impulsionam as letras dos Paradigma.

A noite levou consigo a primeira edição do Festival Apura, que surgiu com o intuito de “criar uma plataforma de música e arte independente de forma gratuita”, como afirma Bernardo. Para o organizador, Coimbra tem uma dificuldade enorme em “apostar em artistas ‘underground’”. A iniciativa colocou-se então no lugar de “dar luz a bandas que estão a arranhar o seu conceito artístico”. Esse espaço de crescimento cedido pelo Apura contribuiu para a “relação bilateral” do festival. Nas palavras de Bernardo, “não é só o público que recebe. Foi um festival muito bonito nesse aspeto”.

Fotografias: André Crujo

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